Por Simon Schwartzman*
Cinqüenta anos passados, e o Brasil parece não haver ainda se compenetrado do sentido de 32. Na história oficial, a Revolução Constitucionalista ficou como uma tentativa frustrada de fazer voltar a roda do tempo, para os idos da República Oligárquica, da política dos governadores, das atas falsas e da política do café com leite. A oligarquia do café, nesta versão, resistia como podia ao Brasil moderno, organizado, centralizado e industrializado que tinha sido o grande objetivo da Revolução de 30, e que Vargas trataria de realizar nos anos vindouros.
A versão paulista, é claro, era totalmente distinta, Para muitos de seus entusiastas, a Revolução de 32 foi, como seu próprio nome indicava, um movimento pela constituição, pela democracia, pela liberdade, ameaçada pelas tendências totalitárias que se prenunciavam. Para os paulistas tratava-se, acima de tudo, de garantir sua autonomia e independência em relação ao poder central, não para deter o progresso, mas para, exatamente, impulsioná-lo. Monteiro Lobato, extremado como sempre, levava aos limites este ponto de vista, em manifesto escrito para a população paulista em agosto daquele ano. “Criador de riquezas que é”, dizia ele, referindo-se a seu Estado, “não pode deixar a riqueza que já criou, e que está habilitado a ir criando, à mercê da pilhagem sistemática, e crescente, que por meio do governo central todo o resto da federação vem procedendo”. Ele investe contra a “perturbação militarista que assumiu a forma da ditadura-Getúlio”, e sugere que os paulistas se armem pessoalmente, como na Suiça; E proclama seu objetivo: “Hegemonia ou Separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política que lhe dá a hegemonia de fato que já conquistou pelo seu trabalho no campo econômico e cultural, ou separa-se”. E radicaliza: Aceitemos Hobbes. Sejamos lobos contra lobos. Lobos gordos contra lobos famintos. Organizemos nossa defesa. Tenhamos ate nossa Tcheka interna, nos moldes russos….” (transcrito em Hélio Silva, 1932 – A Guerra Paulista, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967).
A cisão entre São Paulo e o governo central não se explica por um simples confronto entre progressistas e conservadores. O governo mineiro de Olegário Maciel não estava mais à esquerda que o Partido Republicano Paulista; e o Partido Democrático, paulista, era certamente mais liberal do que o Clube 3 de Outubro, formado pelos Tenentes, aos quais não faltavam personalidades fortemente populistas, como Pedro Ernesto. A diferença básica era a das experiências vividas e das concepções de cada um dos lados sobre o presente e o futuro do país, tão diferentes que não se comunicavam, e que terminaram se confrontando pela força das armas, para mais tarde se acomodarem sob a força das circunstancias. Eram dois Brasís em formação que se a força chocavam num confronto que, em certo sentido, ainda persiste.
O Brasil de Vargas que se plasmava, na visão de seus mais lúcidos ideólogos, era o de um Estado forte, centralizado, interventor e racional, que se organizava e se sobrepunha a uma sociedade primitiva, débil e dominada por oligarquias parasitarias e incompetentes… E claro que a realidade política era mais complicada do que isto, e em 1932 o Governo Provisório era ainda um amalgama pouco claro de oligarquias regionais, velhos militares, tenentes do Clube 3 de Outubro e alguns setores urbanos mais mobilizados e esperançosos, sob a liderança hesitante de Getúlio Vargas. A Revolução de 32, embora derrotada, provoca uma contenção dos mais impacientes, e conduz à Constituinte de 1934. Só mais tarde, em 1937, é que o grande projeto do Estado Novo tem sua chance de ser testado. Inspirado nos modelos autoritários da Europa, o novo regime fortalece a maquina administrativa interventora, trata de desenvolver a industria e modernizar as forças armadas, e se livra dos que, tanto à esquerda quanto à direita, buscavam criar formas independentes e autônomas de organização e mobilização social. Haviam, no entanto, limites ao poder tecnocrático, e a necessidade de uma politica de alianças que acabou se exercendo com os representantes mais passivos e aquiescentes das velhas oligarquias regionais… Isto explica, em boa parte, porque os grandes projetos nacionais se diluíam em sua implementação quotidiana. Isto explica, também, o conservadorismo do grande partido Varguista do após guerra, o PSD. Ao final da guerra, com a retórica autoritária em recesso e os ideais da democracia liberal em ascensão, surge um componente até então contido e reprimido do varguismo, o apelo direto “ao povo , principalmente das grandes cidades. Era o populismo que surgia. Uma das conseqüências significativas de 32, no entanto, foi que os grandes partidos varguistas, o PSD e o PTB, jamais conseguiram expressão em São Paulo, e o populismo paulista, criado à sombra do Estado Novo por Ademar de Barros, jamais se acomodou ao sistema político-partidário do pós-guerra.
Como teria sido se São Paulo tivesse vencido? Houve quem comparasse aquele período com a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, com a diferença que, enquanto lá a vitoria foi do norte moderno e capitalista contra o sul tradicional e escravocrata, aqui teria ocorrido exatamente o inverso. São Paulo representava em boa parte, como bem o percebia Monteiro Lobato, a linha de frente do desenvolvimento capitalista no Brasil… No pior dos cenários, a vitória paulista poderia ter significado a vitoria dos “lobos gordos” contra os “lobos famintos”, e uma concentração maior ainda dc) que a de hoje da riqueza nacional na região paulistana. Existem, no entanto, vários cenários mais favoráveis.
O crescimento do capitalismo paulista vinha associado a uma população cada vez mais educada, a um proletariado cada vez maior e mais organizado, e a um grande fluxo de imigração europeia, que trazia de seus países novas mentalidades. Um sistema político centrado em São Paulo, em que predominassem estes elementos, poderia quem sabe ter resultado em algo mais ao estilo das democracias ocidentais da Europa, com mais pluralismo, menos autoritarismo, e mais competência na gestão da coisa pública. Estes eram, sem dúvida, os ideais do Partido Democrático, que propunha um regime federativo muito mais definido para o país, com estrito controle do Presidente (eleito por via indireta) pelo Congresso. Poderíamos ter tido partidos políticos de cunho mais claramente capitalista e burguês, que defendessem de forma pública e clara os interesses de sua classe; e partidos operários e socialistas apoiados em um sindicalismo forte e independente, é não na maquina sindical controlada pelo Mínistério do Trabalho; poderíamos ter tido uma universidade mais dinâmica, baseada na inspiração original da USP, e um sistema educacional mais abrangente e de melhor qualidade, no lugar da camisa de força imposta a todos pelo Ministério da Educação…
Mas, teria sido possível este cenário? Provavelmente não. Primeiro, porque haviam muito mais “lobos famintos” do que “lobos gordos” e atrás dos famintos um exército de ovelhas apostando nos despojos. Segundo, porque o São Paulo que se sublevava não era somente o do Brasil moderno, mas também o do velho PRP e das plantations da café, preocupados acima de tudo em recuperar suas posições de mando e o fluxo de sua renda, tão abalado pela crise mundial de 1929. A derrota paulista de 1932 contribuiu para cristalizar uma tendência que já vinha desde antes, que era a de um pacto de dependência dos grupos econômicos mais fortes, ligados principalmente à agricultura de exportação, em relação ao Estado nacional. Era um pacto que foi sendo gradualmente estendido a outros setores da sociedade à industria, aos sindicato a, às organizações profissionais, aos partidos e movimentos políticos pelo qual uma fatia mais ou menos significativa dos benefícios do desenvolvimento e da ordem social lhes são assegurados, em troca do abandono definitivo de projetos políticos próprios. O resultado e uma sociedade politicamente débil e irresponsável, ao lado de um Estado hipertrofiado, sem limites a sua ação, mas, paradoxalmente, cada vez mais incapaz de governar.
Lembrar 32 significa, acima de tudo, tomar consciência de que as coisas devem e, quem sabe, podem vir a ser diferentes.
*Publicado no Jornal do Brasil, Caderno Especial, p. 1, 6 de novembro de 1982