Separatismo não é crime | Por João Nascimento Franco*

“Trata-se da liberdade de opinião, assegurada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em vez de coagir, cabe às autoridades, em respeito ao princípio de autodeterminação dos povos e a liberdade de opinião, testar a consistência ou a inconsistência da ideia através de um plebiscito cujo resultado deverá ser civilizadamente aceito tanto pelos separatistas quanto pelos adeptos da união”.

Quando a idéia separatista começou a ganhar impulso, algumas autoridades ensaiaram a repressão com base na Lei n° 7.170, de 19 , que tem por objeta punir os crimes contra a segurança nacional, a unidade territorial e a ordem política e social. Durante o Estado Novo, foi editado o Decreto-lei n° 431, de 18.5.38, cujo art. 2°, item 3, cominava com a pena de morte para quem tentasse “por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional”, desde que para reprimi-lo fosse necessário o uso de operações de guerra. Tratava-se, evidentemente, de texto “ad terrorem”, porque nenhum movimento armado estava ameaçando a unidade territorial do Brasil. Leis dessa ordem são típicas dos regimes de força. Disfarçando seus verdadeiros objetivos, que é amordaçar a liberdade de opinião e de sua comunicação, o legislador editou a Lei n° 7.170, que, segundo prestigiosas opiniões, ficou revogada pelos incisos seguintes, do art. 5°, da Constituição de 1988: a) IV e IX, que asseguram a livre manifestação de pensamento; b) VIII, segundo o qual ninguém será privado de direitos por motivo de convicção política; c) XVI, XVII e XVIII, respectivamente destinados à tutela do direito de reunião e de associação para fins pacíficos.

Referidos textos constitucionais são mandamentos que têm de ser respeitados e cumpridos. Contra eles é inoponivel toda e qualquer disposição infra-constitucional, assim como atos em contrario de qualquer autoridade. Portanto, desde que se utilizem de meios pacíficos, todos os que vivem no território nacional têm direito de propagar suas ideias políticas, entre as quais a do separatismo, resultante da convicção política de que o país atingiu o ponto culminante do insucesso como unidade geográfica e administrativa. Mesmo entre os separatistas mais convictos esse desfecho histórico é constatado com pesar. Contudo, os povos têm direito de aspirar o melhor faturo e isso parece impossível através da unidade nacional de um país que tem, entre seus cento e quarenta milhões de habitantes, trinta e dois milhões de famintos; que apresenta analfabetismo ascendente, impressionante favelização urbana, confesso colapso da malha rodoviária, precaríssimo sistema ferroviário, elevado nível de insalubridade, de miséria, de criminalidade e, sobretudo, institucionalizada corrupção administrativa. E que nada faz com visão e objetividade para que esses fatos sejam superados. Diante desse quadro, irrompeu a proposta separatista pugnando pelo fracionamento do país em cinco ou seis blocos, a fim de que cada qual possa gerenciar o produto de seu trabalho e cuidar de seu próprio destino. Talvez, segundo alguns, por via de uma confederação real, descompromissada com o passado e com o tal “jeitinho” que costuma ser utilizado como habilidade, mas que não passa de maquinação através da qual “plus ça change plus ça c’est la même chose”…

Pensar e agir pacificamente nesse sentido é direito inderrogável pela malsinada lei federal n° 7.170, de 1983, com a qual o autoritarismo militar pretendeu algemar ideias e nulificar a liberdade individual.

Essa conclusão deflui de sentença proferida, em 31.8.93, pelo juiz José Almada de Souza, da 8* Vara da Justiça Federal de Curitiba (O inquérito foi mandado à Justiça Federal a pedido do procurador da Justiça Militar, por ele considerado incompetente, uma vez que cogitava de fato que, se criminoso, teria natureza política), na qual o ilustre magistrado determinou o arquivamento de inquérito instaurado pela Policia Federal do Paraná, mediante provocação do Ministério da Justiça. E é importante salientar que referida decisão atendeu a requerimento do próprio Ministério Público, representado pelo Procurador da Justiça, Dr. Jair Bolzani, que se tomou, pela sensatez e serenidade de sua manifestação, credor das homenagens dos homens livres. Em seu pronunciamento, o douto Procurador ponderou: “Primeiramente, há que se ter em conta que a configuração do crime previsto no artigo 11 da Lei n° 7.170/83 depende da ocorrência de um dano efetivo á integridade territorial nacional ou de um dano potencial, isto é, aquele que pode resultar do comportamento do sujeito, conforme prevê o artigo 1° da referida lei. Portanto, não se pode admitir, sob pena de má aplicação de tal lei, que a apreensão de bonés, chaveiros, camisetas, cartazes, adesivos e panfletos com os dizeres “O Sul é o meu pais” e “Sociedade amigos do Paraná’ seja suficiente para perfazer o tipo penal em exame.”

Em suma, segundo o ilustre membro do Ministério Público, a utilização de meios pacíficos de difusão de tema separatista não compromete a ordem pública, porque se insere na liberdade de opinião e de sua manifestação, assegurada pela Lei Maior.

Igual entendimento já havia sido sustentado pelo ilustre criminalista Damásio E. de Jesus, ao escrever que os delitos capitulados na Lei n° 7.170 só se tipificam com um concreto “ato executório de tentativa de divisão do país, mediante violência física, grave ameaça, atos de terrorismo, estrutura paramilitar, etc.”. Numa síntese, a consagrado criminalista preleciona que “o crime consiste em tentar dividir o país á força”(cf. “O Estado de S.Paulo 18.5.93,pág.3).

Também o ilustre advogado e jornalista Luiz Francisco Carvalho Filho lamentou que o Presidente da República e seu Ministro da Justiça partissem para a intimidação brandindo a famigerada Lei de Segurança Nacional que, sobre ter sido revogada pela Constituição Federal, evoca a fase mais toma da ditadura militar: “Ao reprimir os separatistas do Sul do pais, tentando enquadra-los na Lei de Segurança Nacional”, disse o ilustre advogado, o governo “revela desvio autoritário, desconhecimento da lei e falta de inteligência política”.

E prossegue, depois de afirmar que se os separatistas haviam ofendido a Constituição, o governo também a tinha violado: “Em primeiro lugar, porque o dispositivo que pune a tentativa de desmembramento do território não é para quem manifesta a ideia, mas para quem tenta dividir o país á força. Os separatistas têm direito de se associar, de defender a convocação de um plebiscito para decidir o desmembramento e difundir o projeto”. Antecipando-se ás decisões judiciais que viriam trancar os inquéritos contra os separatistas, conclui o jurista: “O que se deve proibir é o ato de violência, é a organização paramilitar. Ao contrário do que pensa o ministro da Justiça, a Constituição assegura a plenitude da liberdade de manifestação do pensamento. E, com efeito, o país tem muitos problemas reais”. (Folha de São Paulo, 9.5.93,m pág 1-12)

No mesmo sentido disserta Sérgio Alves de Oliveira, em obra sobre o propósito separatista sulino, depois de ponderar que o Estado é um meio e não um fim: “Se o Estado não consegue atender a contento as necessidades e desejos humanos, nos parece que o próprio direito natural coloca nas mãos do homem a faculdade de refazer o Estado dentro desse objetivo”. E continua: “Portanto, nenhum crime existe em buscar o bem-estar do povo de uma determinada região mediante o processo separatista, o que é uma das formas admitidas em doutrina para refazer o Estado. E tanto isso é um direito que a própria história registra inúmeras mutações havidas ao longo do tempo em outras nações. Se é tida como válida a emancipação de municípios e de Estados-membros, qual o motivo de não se entender esse mesmo direito a regiões que desejam formar um novo Estado soberano? Se é possível ao indivíduo, a qualquer momento, desligar-se das sociedades humanas, o que é consagrado inclusive na constituição, como deixar de reconhecer o direito de secessão?” (Independência do Sul, pág 61).

Nos comentários às constituições e cartas constitucionais brasileiras, desde a de 1891 até a outorgada pela ditadura militar em 1964, Pontes de Miranda reprisou sempre que se integram, uma como consequência da outra, a liberdade de pensamento e a liberdade de expressa-lo. Segundo o constitucionalista, o aniquilamento de uma importa na inutilidade da outra:”Se o poder público se esforça, se afana, por saber o que no intimo se pensa, o que se diz, não há liberdade de pensar. Tal esmiuçar de palavras, de gestos, para se descobrir o que o individuo pensa, marca um período de estagnação ou de decadência dos povos. A diferença entre liberdade de pensamento e liberdade de emissão do pensamento está como se quer. Nessa, além de tal direito, o de se emitir de público o pensamento. Mas que vale aquela sem essa? Vale o sofrimento de Copérnico esperando a morte, ou o acaso, para publicar a sua descoberta. Vale o sofrimento de todos os perseguidos, em todos os tempos, por trazerem verdades que não servem ás minorias dominantes, essas minorias que precisam considerar coisa, “ontos”, as abstrações, para que a maioria não lhes veja falsidade” (Comentários á constituição de 1967, tomo V, págs. 149 in fine e 150).

Fiéis a esses princípios, os juristas se manifestaram contra a repressão aos separatistas e esclareceram que a sustentação da ideia secessionista respalda-se no principio constitucional da liberdade de opinião, donde resulta que nenhum crime eles praticam quando as divulgam. Crime é, como se verificou, a utilização de meios violentos e de organização paramilitar.

Nenhum ato desse tipo foi até hoje praticado, nem está na intenção dos que, convencidos da inoperância da união política e territorial brasileira, pregam por meios pacíficos a separação, que pode ser alcançada sem recurso á violência, pelo simples debate das ideias. Porque, já dizia Voltaire, quando um povo começa a pensar ninguém consegue detê-lo. O direito de secessão se concretizará se e quando o momento histórico chegar, tal como aconteceu com o Brasil em relação a Portugal, ou com os Estados Unidos em relação á Inglaterra. Tudo permite admitir que o desate poderá ser feito através de simples reforma constitucional que dará espaço a um plebiscito arejado, amplo e livre. Até lá os separatistas suportarão a pecha de impatriotas. Mas resistirão, lembrando-se de que também De Gaulle e Jean Moulin foram rachados de inimigos da pátria e de subversivos pelo regime de Vichy, quando sozinhos começaram a lutar pela libertação da França; de que Tiradentes foi igualmente apodado de louco e de lesa-pátria pelas autoridades fiéis á Coroa portuguesa, de que os revolucionários de 1932, que o governo federal de então denunciou ao pais como inimigos, hoje são reverenciados até pelo Exército, nas comemorações realizadas em cada 9 de Julho…

Compreende-se, portanto, a serenidade e o senso de justiça com que agiram o Ministério Público e o referido Juiz Federal do Paraná, não vislumbrando nenhum matiz delituoso nos atos meramente políticos praticados pelos lideres paranaenses do Movimento “O Sul é o meu Pais”. E note-se que ao parecer acolhido pela mencionada sentença, soma-se outra manifestação do Ministério Público Federal reconhecendo o direito à divulgação do ideal separatista e tutelando-o contra ato do chefe da agência da Empresa Brasileira de Correios, na cidade de Laguna, que resolveu interditar a expedição e o recebimento de correspondência pelo Movimento “O Sul é o meu Pais” (O Estatuto do Movimento O Sul é o meu País tem existência legal, pois foi registrado sob n° 363, fls. nº 86, livro A.3, do Registro Especial de Laguna, e está inscrito no CGC-MF nº 80.961 337/0001-02). Em face desse ato, o presidente do Movimento, Dr. Adílcio Cadorin, reclamou perante o Ministério da Justiça, que encaminhou o caso ao Ministério Público Federal, em Florianópolis. Tão logo recebeu o expediente ministerial, o Ministério Público Federal, por seu agente de Florianópolis, impetrou mandado de segurança contra o ato da autoridade coautora. Na sustentação do “writ” impetrado, o Procurador da República, Dr. Marco Aurélio Dutra Aydos, escreveu: “Tratando-se de direito concernente a liberdades públicas, desde logo que se estabeleça um princípio interpretativo: só pode ser ele limitado por lei que defina, precisamente e em toda a sua extensão, o objeto de restrição. A enumeração legal deve ser entendida como de numerus clausus, não podendo ser ampliada por analogia. É principio de direito penal que a lei incriminadora tenha de ser certa, lex cena como ensina FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO: “A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.” (“Princípios Básicos de Direito Penal”, SP, Saraiva, 1991, p. 29)”. O principio da lex certa é de todo aplicável ao caso em exame, que trata de restrição legal a direito constitucionalmente assegurado. Se a lei restritiva é aberta, vazia, pode o administrador jogar com os seus conceitos para conceder ou negar o direito a seu falante. Expressões com “dizeres injuriosos, ameaçadores, ofensivos à moral, contrários à ordem pública ou aos interesse do país, não são aptas a conferir certeza á norma restritiva de direito.

Ao fazer juízo de inconveniência aos interesses do pais e á ordem pública, fundado no art. 13, IV da Lei 6.538/78, a autoridade impetrada não apenas restringiu o direito à correspondência em casos que ela mesma considera “muito complexa”, mas antecipou-se á investigação policial e á opinião delicti. O administrador foi polícia, acusador e juiz. No caso concreto, a investigação policial iniciou-se com pedido de busca e apreensão formulado perante o Juízo Federal da Segunda Vara (Processo n° 93.0003779-0). Pode se cogitar da hipótese de o Ministério Público e o Judiciário considerarem a conduta, do ponto de vista da Lei de Segurança Nacional em vigor, licita. Não se pode admitir que a Administração emita tais juízos, restringindo direitos. Sendo penalmente licita ou irrelevante a conduta, não pode o administrador fazer dela juízo de oportunidade e conveniência, a teor do art. 13, IV da Lei 6.538/78, a qual, nessa parte, por criar tipo um vago e incerto para restrição de direito constitucional, afronta a Lei Maior”.

Estas considerações e tão lúcidas manifestações do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos juristas, deixam claro que qualquer pessoa pode aspirar e pregar a separação de seu Estado, quando convicta de que ele está suficientemente preparado para gerir seus próprios negócios, ou por entender que seus interesses atingiram um ponto de clivagem com os interesses de outras regiões. Conseqüentemente, nada justifica restrição ou punição dos que sustentam o ideal separatista pelos meios de comunicação, desde o rádio até o livro. É claro que, em respeito á Constituição, não deve ser adotado nem insinuado nenhum meio violento. Melhor dizendo, ou sendo mais claramente, ser separatista e debater o separatismo é direito que nenhuma norma legal pode impedir sem desrespeito á Constituição.

Trata-se da liberdade de opinião, assegurada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em vez de coagir, cabe às autoridades, em respeito ao princípio de autodeterminação dos povos e á liberdade de opinião, testar a consistência ou a inconsistência da idéia através de um plebiscito cujo resultado deverá ser civilizadamente aceito tanto pelos separatistas quanto pelos adeptos da união. Dir-se-á que a Constituição considera a unidade nacional como “cláusula pétrea” e que, por isso, o plebiscito seja inconstitucional. Ocorre que as “cláusulas pétreas” constituem uma heresia sempre suplantada pela força incoercível da História. Quando o relógio da História bater a hora da separação nenhum dispositivo legal, pétreo ou não, poderá adiá-la.

*O autor é Constitucionalista, autor de Fundamentos do Separatismo (Editora Panartz, 1993).

DAMÁSIO E. DE JESUS – Jurista e professor:
“Conduta inofensiva não é crime – O crime consiste em tentar dividir o país a força. Um simples boné acenando ao vento não ofende a Segurança Nacional. É uma simples manifestação do pensamento, assegurada pela Constituição Federal”.
(Gazeta do Paraná – Cascavel, 24/05/1993)