Por Fábio Mazzitelli
O alfaiate Hércules Caetano Castagna, 90 anos, guarda nas lembranças de criança o estrondo que interrompeu o almoço da família na Mooca de julho de 1924. A bomba destruiu a parede do sobrado, girou como peão na cozinha e queimou os braços do pai de Hércules, que a embalou para o quintal, longe dos 12 filhos e da mulher. O artefato nunca explodiu e, passados 85 anos, virou relíquia, uma das poucas dos 23 dias de bombardeio sobre a capital.
Entre 5 e 27 de junho de 1924, São Paulo foi palco de uma revolta tenentista que pretendia tomar a cidade e, a partir daí, marchar para o Rio de Janeiro para destituir o governo do presidente Arthur Bernardes. Os planos fracassaram, a capital foi cercada por tropas federais e bombardeada, o único bombardeio da história da cidade.
Bairros operários, como a Mooca da família Castagna, foram alguns dos alvos das bombas legalistas, motivadas pelo temor de que seus moradores engrossassem as fileiras dos revoltosos. “Foi terrível, fez um rombo na parede deste tamanho”, recorda Hércules Caetano, abrindo os braços para dar a dimensão do buraco aberto pela bomba na parede da cozinha.
Dos 700 mil habitantes de São Paulo na época, cerca de 300 mil fugiram da cidade, que estava sob bombardeios de canhão e avião. Os 14 integrantes da família Castagna estavam entre eles. Foram à casa de um carvoeiro amigo da família, em São Caetano do Sul. “Era tudo mato lá.”
Manuela Tarraço Castagna, 86 anos, era bebê quando os tenentes do Exército e da Força Pública se rebelaram. Casou-se com Hércules e, por tabela, com a “granada”, como a bomba é conhecida em família. Hoje, além de ter muito ciúme do artefato, refaz a história tão bem quanto o marido.
“Além de fugir para São Caetano, a família dele tinha que comer polenta todo dia porque só tinha fubá”, recorda Manuela Tarraço, em referência indireta à crise de abastecimento que marcou o período em que o paulistano ficou sob o fogo cruzado dos militares.


Uma santa na trincheira
A própria família de Manuela passou por provações ao passar pelas barreiras montadas pelos soldados nas ruas de São Paulo.
“Meu pai saiu a pé comigo e com a minha mãe, do Belém até o Brás, que tinha um lugar mais calmo para a gente. Era tudo trincheira”, conta, repetindo o relato que ouviu dos pais. “No meio do caminho, pensou que tivesse tropeçado em uma pedra, mas era uma imagem de ferro de Santa Teresinha. Quando o soldado ia atirar nele, viu a imagem e falou: ‘Vai que não vou matar vocês’”, diz.
A contagem oficial das vítimas parou em 503 mortos e 4.846 feridos. Para o professor de História da Universidade de São Paulo e coordenador do Arquivo Público do Estado, Carlos Bacellar, não há dúvida de que morreu mais gente.
“Consta que Arthur Bernardes mandou suspender a contagem dos mortos. Houve fuzilamentos sumários, sepultamentos em covas coletivas. Muitos civis que fugiam do cerco das tropas federais eram mortos”, afirma Bacellar.
Não há um único monumento na capital que faça alusão à memória das centenas de vítimas. Para os historiadores, o esquecimento é explicado, entre outros motivos, porque o movimento não surgiu nem se enraizou na elite política paulista. Ao contrário do que ocorreu com a Revolução Constitucionalista de 1932.
“Os governos autoritários que vieram nos anos posteriores também ajudaram nesse processo (de esquecimento histórico)”, acredita Anna Maria Martinez Correa, autora de um livro sobre a revolta esquecida de 1924.
Na residência do casal Castagna – que criaram dois filhos na Mooca e seguem como fiéis moradores do bairro – nem mesmo a memória ferida do nonagenário Hércules Caetano Castagna, que desenvolve a doença de Alzheimer, sepulta as lembranças de guerra e, sobretudo, paz.
“Estamos há 66 anos juntos, casados, e nunca brigamos. Tivemos uma vida feliz”, afirma Manuela Tarraço Castagna, sob uma piscadela do companheiro.


Líder rebelde morreu no conflito
Liderados pelo general Isidoro Dias Lopes e com Miguel Costa, Juarez e Joaquim Távora nas linhas de frente, o grupo de rebeldes – tenentes em boa parte – reivindicava a independência do Legislativo, a limitação dos poderes do Executivo e o voto secreto.
Na época, o presidente Arthur Bernardes (1875-1955) governava em estado de sítio, com amplos poderes e restrições à imprensa.
A revolta começou na madrugada de 5 de julho. A estratégia era tomar a cidade e avançar em direção ao Rio, então capital federal. Foram tomados quartéis, como da Luz e de Santana, o Campo de Marte e estações de trem. Carlos de Campos, então governador do Estado, refugiou-se na Penha.
As tropas federais cercaram São Paulo e bombardearam bairros como Perdizes, Brás, Mooca, Belém, Luz e Cambuci, entre outros.
Joaquim Távora, um dos líderes dos rebeldes, morreu ao tentar tomar quartel na Vila Mariana, perto da rua que hoje leva seu nome.
Acuados, os revoltosos fugiram na noite de 27 de julho de trem para o interior, onde ajudariam a formar a Coluna Prestes.

Prefeitura põe memorial no papel
O maior conflito armado da história de São Paulo ensaia deixar o esquecimento com uma série de iniciativas de resgate da memória da Revolução de 1924.
A mais simbólica delas é a construção de um memorial na chaminé localizada no canteiro central da Rua João Teodoro, na Luz, única construção da cidade que guarda marcas do confronto, feitas à bala. O antigo quartel da Luz, hoje sede do Batalhão da Rota, foi alvo constante dos bombardeios, pois era um dos núcleos dos revoltosos.
A Secretaria Municipal de Cultura diz ter desenhado um projeto para revitalizar o local, com a instalação de um memorial em homenagem às vítimas que inclui melhorias para o entorno. A ideia é transformar em calçadão uma das pistas da João Teodoro. Mas o projeto, elaborado em 2008, ainda não tem data para sair do papel, afirma a pasta.
Outra iniciativa partiu de José de Souza Martins, professor emérito da Universidade de São Paulo. Estudioso do tema, Martins vai transformar em livro extensa pesquisa que inclui entrevistas com personagens do conflito, feitas na década de 70. A obra deve ficar pronta até o final deste ano.

O resgate também ocorreu no Arquivo Público do Estado, que digitalizou 432 cartas trocadas pelos líderes da revolta. Todas estão disponíveis para consultas, como também 52 mil páginas do processo criminal que denunciou 702 pessoas. No início do ano, o governo estadual organizou no Palácio dos Bandeirantes a exposição “1924, a Revolução Esquecida”, com registros do conflito.